Que Bolsonaro Ă© um personagem que se representa em dois registros performáticos, alternados conforme a conveniĂŞncia, Ă© algo que venho afirmando há anos. Há, de um lado, o modo valentĂŁo, arruaceiro, irreverente e afrontoso, que serve bem ao vitalismo de quem aprecia lĂderes autoritários, fortes e que se impõem. Mas há tambĂ©m a chave oposta: a do coitadinho, da vĂtima, do perseguido e do sofredor, que exige comoção e compaixĂŁo —acompanhadas, naturalmente, de um sentimento de revolta contra quem lhe teria infligido tamanha injustiça.
Os dois modos se sucedem em circuito contĂnuo, sempre nesta sequĂŞncia: primeiro, a bravata, o insulto, a ameaça expelida em nuvens de perdigotos, a exibição da coragem viril; depois, caso algo dĂŞ errado, o ator troca a máscara e reaparece coberto de dores e tormentos, lágrimas nos olhos ou expressĂŁo resignada, clamando por solidariedade dos seus diante do cerco de inimigos implacáveis.
Se reunĂssemos todos os cortes de vĂdeos em que Bolsonaro —antes e depois de ungido como o "Davi do antipetismo"— afronta, pisa, xinga, grita, lacra, desafia e ameaça, terĂamos um longa-metragem de dimensões consideráveis. Foi com esse personagem que ele se transformou no "mito" de uma geração que glorifica a irreverĂŞncia, o politicamente incorreto, a afirmação brutal da pulsĂŁo de vida e, sobretudo, o prĂłprio ressentimento.
Por outro lado, tampouco faltam cenas de choro compulsivo, denĂşncias de perseguição pelo "sistema", exibição das chagas fĂsicas e alegações constantes de ser uma vĂtima permanente e injustiçada.
Calhou agora de testemunharmos uma nova performance do modo "coitadinho", depois de termos assistido, atĂ© em live hospitalar, a encenações recentes do modo "machĂŁo". Desta vez, com especial insistĂŞncia na exibição do corpo da pobre vĂtima internada, retalhada e agonizante: nĂŁo mais o "fĂsico de atleta" e a imodesta glorificação das prĂłprias habilidades militares, mas a exposição quase obscena de cicatrizes feias e assimĂ©tricas, de um corpo surrado, cortado e disforme, coberto de hematomas e drenos —a imagem de um homem prostrado e vencido.
Nem os sinais habituais de otimismo —tĂpicos da liturgia digital das celebridades internadas, com selfies, mensagens de superação e flores no quarto— comparecem. NĂŁo há balões, nem sorriso forçado, nem "joinhas" de esperança. Bolsonaro se exibe —ele mesmo, em suas redes sociais— grotesco, exausto, quase cadavĂ©rico. A feiura —do corpo, da imagem e da situação— Ă© buscada, Ă© intencional. A mensagem nĂŁo Ă© de resistĂŞncia e superação, mas de martĂrio e sacrifĂcio. NĂŁo Ă© o herĂłi ferido; Ă© o mártir em pleno ato sacrificial.
Em outros tempos, os dois modos performativos de Bolsonaro eram mais bem controlados por seus roteiristas e diretores de imagem. Agora, algo parece ter escapado da velha arte de construir narrativas e controlar a performance que seu cĂrculo Ăntimo dominava com habilidade.
Ser "coitadinho" no molde original —ultrajado, mas nĂŁo vencido, preparando-se para retaliar— Ă© uma coisa. Outra, bem diferente, Ă© encenar uma espĂ©cie de Noiva Cadáver polĂtica, em que o lĂder se exibe mutilado, caindo aos pedaços e se decompondo em pĂşblico. Se o objetivo era provocar compaixĂŁo e revolta, Bolsonaro pode ter errado a mĂŁo: a sensação provocada Ă© de desconforto e repulsa.
Nas hostes adversárias, alguns enxergam na profusĂŁo de imagens hospitalares ecos inconscientes do culto Ă morte que marcou o franquismo tardio, por exemplo. Mas nada, nos antecedentes da dramaturgia bolsonarista, autoriza essa leitura. O grotesco, o cru e o feio na iconografia de Bolsonaro sempre foram instrumentos para evocar autenticidade e irreverĂŞncia, jamais para convocar a morbidez ou a celebração da decadĂŞncia. E o "modo vĂtima" sempre foi acionado para ativar narrativas de reação e revanche, nĂŁo para exibir ruĂna e decomposição. O bolsonarismo sempre foi, nesse sentido, um revanchismo vitalista, nĂŁo um mĂłrbido decadentismo.
Essa performance de um lĂder despido e mutilado em um leito de hospital nĂŁo corresponde ao roteiro original. Os diretores de "Bolsonaro, o filme" sempre souberam usar o vitimismo como motor para novas investidas, exibindo as feridas como provas de resiliĂŞncia —à maneira de Trump, que, mesmo ferido a bala, convocava o contra-ataque.
Talvez, sem perceber, Bolsonaro tenha inaugurado —em ato— a imagem crepuscular de seu personagem maior: não o mito inviolável, mas um corpo batido pelo tempo e pelas circunstâncias, decompondo-se em público.
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