Catto lança novo disco: "Quero muito bater no peito que sou uma cantora de rock gaúcho" | GZH


Catto's new album, "Caminhos Selvagens," is a deeply personal and intense rock album inspired by 1990s alternative rock and Brazilian female artists.
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Catto se inspirou em músicas de "sofrência feminina" para compor letras confessionais no novo álbum. Ivi Maiga Bugrimenko / Divulgação

Intenso, dramático e íntimo. Ou, como a própria cantora define, do tipo para ouvir às 6h, ao chegar de uma festa, abrindo uma garrafa de vinho que não deveria. Assim é uma das maneiras para descrever Caminhos Selvagens, quinto disco de estúdio da Catto, lançado nessa quinta-feira (15) nas plataformas digitais.

Com produção musical assinada pela artista ao lado de Fabio Pinczowski e Jojo Inácio, o álbum reúne oito faixas com inspiração no rock alternativo dos anos 1990, mas com letras confessionais que contam com interpretações intensas, como as feitas pelas divas brasileiras do passado. É como se PJ Harvey encontrasse Angela Roro.

Natural de Lajeado, Catto hoje vive em São Paulo, mas em Caminhos Selvagens rememora experiências na capital gaúcha, onde ela cresceu. Também é seu primeiro álbum de estúdio após sua afirmação como pessoa trans não binária

Em entrevista a Zero Hora, a cantora fala sobre a produção de Caminhos Selvagens e sua afirmação como roqueira gaúcha.

Confira a entrevista com a Catto

Caminhos Selvagens é o seu quinto álbum de estúdio, mas seu trabalho anterior, Belezas São Coisas Acesas por Dentro, foi apontado pela crítica musical como um dos melhores discos brasileiros de 2023. Embora o Belezas seja focado na obra da Gal Costa e o novo seja autoral e íntimo, no que você buscou avançar em Caminhos Selvagens em relação aos seus trabalhos anteriores?

Comecei a gestar Caminhos Selvagens assim que lancei o Catto (2017). Quando iniciei a turnê do Nascimento de Vênus, em 2018, fiquei com muita vontade de compor. Naquela época, estava ouvindo bastante Marília Mendonça e me fascinava: como é que pode uma compositora falar de uma coisa tão pessoal, se expõe de um jeito tão obsceno e, ao mesmo tempo, causa uma identificação quase religiosa na gente. Era um momento em que estava amando essas sofrências femininas.

Foi uma das maiores influências para o Caminho Selvagens, no sentido de ser uma mulher que estava ali contando a história dela sem nenhum pudor. Comecei a querer voltar a compor do jeito que compunha antes do meu compromisso em ser profissional. Comecei a revisitar as minhas lembranças. Gravava as músicas no meu Garage Band (software de criação musical), com violão de nylon mesmo, fazia os beats e comecei a construir o que viria a ser a produção do disco.

É uma afronta maravilhosa: o rock gaúcho vai ter que encarar que tem uma cantora que é uma trava do Sarandi

CATTO

Cantora e compositora

O processo começou antes mesmo do álbum Belezas, então.

Ele estava em mim muito antes do Belezas, só que a vida aconteceu no meio disso. Estava lá compondo e, de repente, estava presa em casa durante dois anos. Não conseguia nem pensar ou ter cabeça para lançar um disco de inéditas. Depois da pandemia, comecei a gravar o Caminho Selvagem. Só que gosto de fazer o trabalho com calma. Esse trabalho foi costurado e, enquanto isso, fazia outras coisas.

Estava nesse mergulho muito profundo nas minhas coisas e vivendo a minha transição de gênero. Vivia também o luto de pessoas que perdi nesse meio tempo – meu ex-marido que morreu, amigos que foram embora, uma separação dolorosíssima que me deixou muito mal. Enquanto estava retomando minha vida como artista, aí veio o convite para cantar Gal Costa num show, que virou um disco e explodiu no meio de tudo que estava vivendo.

Você sente que sua carreira cresceu ainda mais com o Belezas?

Foi um trabalho que me reapresentou para o público. "Lembra esta gata aqui? A gata está aqui agora". As pessoas voltaram a se interessar pelo meu trabalho de novo de uma forma mais abrangente. Foi uma grande surpresa, porque quando gravei o Belezas, o nosso projeto mesmo era o Caminhos Selvagens.

Estava com a cabeça muito despretensiosa, não era para ser um disco de carreira. Inseri esse meu projeto cantando Gal Costa dentro dessa janela como um especial, enquanto não lançava o álbum de inéditas. 

Lembro que o lançamento de Belezas em vinil esgotou em algumas horas na pré-venda.

A gente não esperava. Pensei que as pessoas iam achar "uó". “Quem é essa roqueira desgraçada cantando Gal Costa?”. Mas também não estava tão preocupada com essas opiniões, só queria registrar um trabalho bonito. Foi muito bom, porque também fortaleceu a minha base de fãs, trouxe gente legal pra caramba, que sinto que ficou pela minha pessoa.

Cheguei num ponto que precisava unir duas coisas que para mim eram muito óbvias: uma cantora de rock alternativo, que gosta da música brasileira mais subversiva, mas que é “filha das grandes divas”.

CATTO

Cantora e compositora

E pavimentou a estrada para o Caminhos Selvagens, não?

Depois de um disco cantando a obra de uma artista tão absolutamente importante como a Gal, a única coisa possível de ser feita é um trabalho autoral. A minha ambição, enquanto artista, é que se conseguir manter o que foi conquistado com o Belezas com o este novo trabalho, estarei bastante satisfeita. Qualquer tipo de expansão que for ter na minha carreira, só acredito que seja feita de acordo com essa expansão de fãs, que paga a estrutura do que quero fazer. Agora tenho uma relação muito sadia com as minhas expectativas.

Ouvindo Caminhos Selvagens, tive a seguinte sensação: é como se a PJ Harvey encontrasse a Angela Roro…

Quais são as referências sonoras que você buscou trabalhar em Caminhos Selvagens?

Estava querendo fazer uma coisa que soasse como se a gente estivesse ouvindo vendo a MTV de madrugada em 1998, pois sou dessa época e sempre fui tão alimentada por essa estética. Adoro muito a sonoridade dos anos 1990, que traz o rock com violão e tem piano – como Stereophonics ou Alanis Morissette.

Tori Amos foi a inspiração, inclusive, do arranjo de Caminhos Selvagens. Eu imaginava aquele piano dela ou da Fiona Apple. PJ Harvey influenciou muito a sonoridade. Mas a gente tem umas coisas que são muito íntimas. Por exemplo, em Madrigal, pedi para o Jojo uma guitarrinha estilo Kid Abelha, pois queria aquilo naquela hora. Não tivemos preocupação em enquadrar as faixas em nenhum tipo de estilo, só fazer o que a música sugere.

Pois é, mas tem aquilo do rock sujo, com noise e guitarra em evidência.

Isso era uma marca do disco. Fiz um pacto com o rock para sempre. É o lugar que sempre amei. Cheguei num ponto da minha pesquisa que é unir duas coisas que para mim eram muito óbvias, mas que talvez o público não tivesse visto ainda: uma cantora de rock alternativo, com todas as referências da bíblia do indie e que gosta da música brasileira mais subversiva, mas que é “filha das grandes divas”.

Aprendi a cantar com a Dalva, com a Maria Bethânia e com a Elis Regina. A minha alma como intérprete sempre virá dessa exasperação, mas trazendo essa emoção para minha história. Não sou a gata que vai ao teatro municipal aplaudir uma ópera, mas sou a que está no Baixa Augusta (bairro boêmio de São Paulo), às 8h da manhã completamente transformada. Essa é a minha vida.

É o trabalho de, essencialmente, uma artista roqueira?

É uma afronta maravilhosa: o rock gaúcho vai ter que encarar que tem uma cantora que é uma trava do Sarandi. Esse trabalho é puro rock gaúcho, tem a melancolia que vem dessa nossa tradição cultural. Quero muito bater no peito mesmo que sou uma cantora de rock gaúcho.

É onde nasci, é onde me criei, é do Bambus, Beco, Ocidente. Ando frequentando muito a cidade de novo, e a galera está com sede de se ver de novo enquanto cena. Por isso que falo de Porto Alegre nas músicas, o Rio Grande do Sul está muito presente em todo o conceito do disco, até na ideia de ser "on the road". A coisa dos trajetos, o silêncio, a paisagem, a cantora na beira da estrada, isso é super gaúcho vibes. 

Nas letras de Caminhos Selvagens, você trabalha com suas vulnerabilidades. O disco é descrito como o trabalho mais íntimo de sua vida. Como é seguir esse caminho de escancarar sentimentos nas letras?

Esperei a minha vida toda para fazer esse trabalho. Quando ouvi um Jeff Buckley cantando The Last Goodbye, aquilo é tão dele e tão forte. É tipo Fiona Apple cantando Never Is A Promise ou Angela Roro cantando Gota De Sangue. Tem horas que a gente precisa ser verdadeira.

Isso é corajoso e inspirador, ainda mais de uma pessoa trans. O meu objetivo é que a galera pegue esse disco, tome um Corote, e chore mesmo na mesa do bar. Sempre cultuei esses álbuns, que me deixavam ainda mais na fossa. Mexer nessas emoções sempre foi uma coisa que me fez bem. Estou feliz de finalmente poder entregar um trabalho em que posso ser 100% autêntica no meu texto.

A faixa Para Yuri Todos Os Meus Beijos vai de encontro ao que você falou. Confessional e autobiográfica, rememorando experiências. Traz citações a lugares de Porto Alegre, como o Ocidente e a Garagem Hermética.

É uma música sobre saudade e sobre envelhecimento. Ontem tinha 17 anos. Pisquei e tenho 37. Esses 20 anos passaram muito rápido. Hoje sou uma jovem loba. Esses amores, essas pessoas, essas cenas seguiam vivas para mim. Quis falar desses encontros que são tão transformadores, mesmo quando são fugazes. Me nutre lembrar de quem eu era naquele momento, quando estava florescendo enquanto adolescente e, ao mesmo tempo, tão insegura. Não podendo viver, botar o batom que queria. Hoje sou a pessoa que sempre quis ser, mas que pensava que nunca teria coragem. 

Só voltando em um ponto: hoje você é a pessoa que sonhava em ser quando era adolescente?

Totalmente. Hoje posso vestir o que quiser, me chamo com o pronome que tenho. Eu já era trans desde a infância, só que fui reprimida por uma família que veio do interior gaúcho, não por mal, mas por proteção. Para me enquadrar dentro do gênero masculino, do que era esperado de mim. Desde pequena, falava para minha mãe: “Mãe, quando eu for uma mulher…”. Mas ela respondia que eu não era e nunca seria. Ia chorar para o meu quarto e rezava para Deus e pedia: “Por favor, deixa eu ser eu.”

Hoje é muito foda poder subir no palco, fazer a minha maquiagem, passar o meu batom e perceber que não estou ali no palco enquanto uma performer que está incorporando uma persona. Cheguei neste ponto em que a minha figura em cena é exatamente quem eu sou, sem nenhum tipo de disfarce.

Sempre cultuei esses álbuns, que me deixavam ainda mais na fossa (...) O meu objetivo é que a galera pegue esse disco, tome um Corote, e chore mesmo na mesa do bar.

CATTO

Cantora e compositora

Caminhos Selvagens, que dá título ao álbum, parece um manifesto doloroso seu. O que essa faixa reflete?

Estava me sentindo oprimida naquela época. Caminhos Selvagens foi um percurso de lutos, em que tive que abandonar muitas coisas – saí da gravadora multinacional, larguei um empresário extremamente competente para trabalhar com pessoas que tinham mais a ver com o meu estilo de vida. Fiz escolhas nada óbvias. Peguei meu violão pelas costas e saí por aí tocando sozinha.

Caminho Selvagens é uma música que fala muito de uma força que vem da raiz. Quero ser uma estrela, uma grande diva. Isso só é possível se você não tiver medo de se queimar inteira. A diferença deste trabalho para qualquer outro que eu tenha feito é que agora, de verdade, sei o que são os caminhos selvagens. Estive lá e sobrevivi a eles. Estou muito orgulhosa disso. A expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 33 anos, nada mais que isso. Eu tenho 37. Ou seja, estou viva, estou ótima.

Capa de "Caminhos Selvagens", quinto álbum de estúdio da Catto.Reprodução / Reprodução

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