A relação entre o português lusitano, herdeiro direto dos fundadores da língua, e o português brasileiro, falado por 80% dos lusoparlantes, não poderia deixar de ser tensa —como tudo o que é fruto do colonialismo.

Que as duas vertentes da língua estão em processo de distanciamento é consenso entre os estudiosos mais sérios da matéria. A distância não parece tão grande entre falantes letrados porque as chamadas normas cultas têm traços conservadores por natureza.

À medida que se inclui no quadro a língua oral falada pelo povo, mais os desencontros estruturais se revelam. E é a oralidade o solo em que tudo se funda, regra válida para qualquer idioma.

Decorre daí que o Brasil tem pela frente o trabalho cívico —já iniciado, mas ainda incipiente— de atualização da normatividade. Não para transformar nossa norma culta em "vale-tudo", como dizem os reacionários da língua, mas para adequá-la ao nosso modo de falar e escrever.

Exemplos do que está fora da ordem são bem conhecidos. Ninguém no Brasil —e isso inclui filólogos de 115 anos de idade— assiste "a" um filme. Todos assistimos filmes, interpretando o verbo como transitivo direto. Esquizofrênicos, nos julgamos proibidos de escrever assim.

A colocação pronominal é outro campo encrencado. Por questões de ritmo e entonação, amamos a próclise, a anteposição do pronome átono ao verbo, como em "te amo". Os portugueses vão de "amo-te". Agora tente começar por aqui um texto menos informal com "Me lembro..." e veja o mundo cair.

Se essa subserviência é uma vergonha, piora quando bobos alegres apontam os traços de lusofilia de nossa paisagem textual —introduzidos por um ensino ultraconservador e pelo trabalho de gerações de revisores— como provas de que os dois lados do Atlântico estão alinhadíssimos. O escravo feliz acha que as grades da cela são itens de decoração.

No entanto, em nenhum aspecto nosso cacoete de falantes complexados se revela de modo mais ridículo do que naqueles em que os bedéis normativos são, para usar uma expressão tradicional, mais realistas que o rei.

Ocorre nesse caso algo análogo à hipercorreção, fenômeno pelo qual falantes inseguros, de tanto quererem acertar, fazem a escolha gramatical mais enrolada e menos suave à alma. Ou seja, vão na contramão do que é certo.

Todo mundo conhece a velha expressão idiomática "a hora da onça beber água". No Brasil, quem quiser escrevê-la sem ser atormentado pelos corretores precisa cuidar de quebrar esse "da" em "de + a".

O argumento é que não se pode fazer contração nesse caso, pois "a onça" é sujeito de uma nova oração. O mesmo raciocínio é aplicado a frases como "O fato de os EUA estarem em decadência torna o mundo imprevisível". Todos nos julgamos obrigados a escrever assim, com esse soluço artificial separando preposição e artigo.

Uau. Relativizado pelos gramáticos normativos mais esclarecidos, o argumento é superficial como o de uma influencer de 17 anos, mas deitou raízes por aqui. Em Portugal, registre-se, estão nas tintas para isso. A borrifar-se alegremente.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

Por que nos afligimos se Portugal se borrifa? - 14/05/2025 - Sérgio Rodrigues - Folha


Click on the Run Some AI Magic button and choose an AI action to run on this article