“Caro Sérgio, estou aqui na refrescância do ar condicionado pensando: existe mesmo essa palavra, ‘refrescância’? No meu dicionário ela não aparece.” (Marjorie Lopes)

Não é curioso que Marjorie primeiro empregue com naturalidade a palavra “refrescância” e só depois pergunte se ela existe? Claro que entendemos sua dúvida: embora saiba que o substantivo tem assento consolidado em nosso vocabulário e se presta, portanto, à boa comunicação de uma mensagem, ela gostaria de saber se ele tem existência oficial, se é reconhecido pelos dicionaristas. Ou seja, se pode ser considerado “bom português” ou se não passa de uma gíria vira-lata.

A resposta está no meio do caminho. Refrescância é um neologismo brasileiro criado recentemente por publicitários – tudo indica que nos últimos anos do século 20, embora não me conste existir uma certidão de nascimento oficial – para vender pasta de dente. Ainda hoje é uma palavra que tem gosto especial pelo campo semântico da publicidade de produtos de higiene corporal, desodorantes incluídos. No entanto, caiu no gosto dos falantes e vem sendo empregada na linguagem comum em diversas situações.

A lógica da criação da palavra é evidente: numa analogia com pares de vocábulos como beligerante/beligerância, adolescente/adolescência e outros, de refrescante se fez refrescância. Tratava-se de uma licença poética (ou publicitária) que desprezava o termo refrescamento, detentor vernacular de uma acepção idêntica ou no mínimo semelhante: “ato ou efeito de refrescar(-se)”. Outros substantivos tradicionais que poderiam dar conta de tal sentido eram frescor, frescura e os embolorados fresquidão e refrigério. Por razões variadas, nenhum deles deve ter sido considerado tão refrescante quanto refrescância.

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Até poucos anos atrás, era impossível encontrar a palavra em qualquer dicionário. Não é mais assim. O primeiro a acolhê-la foi o “Dicionário de usos do português do Brasil”, de Francisco S. Borba, lançado em 2002. O verbete refrescância ganhou a definição de “sensação de frescor” e um exemplo pinçado (significativamente) num texto da “Folha de S.Paulo” sobre marketing: “Refrescância e proteção. É esse o binômio que orienta toda a comunicação da Kolynos”. Registre-se que a marca Kolynos está fora do mercado desde 1997.

Por sua proposta de flagrar os usos correntes no português brasileiro atual, o dicionário de Borba é liberal por definição. No entanto, ganhou nesse caso um aliado de grande peso institucional quando o Houaiss, numa de suas últimas atualizações, passou a registrar o vocábulo, com datação de “cerca de 2000”: “qualidade do que é refrescante; frescor, fresquidão”. O Aulete também já reconhece a palavra. A assimilação completa de refrescância não está distante.

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Dúvida de verão: existe a palavra ‘refrescância’? | VEJA


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